Aldo Rossi e Borgoricco: a influência do locus
- Analu Cadore
- 20 de fev. de 2021
- 6 min de leitura
Atualizado: 31 de out. de 2023

Fachada da sede da Prefeitura de Borgoricco, Itália. Foto da autora, 2019
O italiano Aldo Rossi (1931-1997) é um personagem cujas obras e estudos constituem um legado importantíssimo para a arquitetura mundial. Suas produções arquitetônicas e literárias são fontes fundamentais nas escolas de arquitetura. São de sua autoria grandes projetos como: Pallazzo della Ragione, Pádova IT (requalificação), Edifício de apartamentos em Gallaratese, Milão IT (1969-1973), Cemitério de San Cataldo, Modena IT (1981-1985) Bloco de apartamentos em Berlin, Alemanha, dentre outros.

Aldo Rossi. Fonte Google Images
Entre suas diversas publicações, o livro A Arquitetura da Cidade é considerado pioneiro em estudos sobre a cidade, resultante do conjunto de fatos urbanos (a arquitetura, as construções, a produção humana edificada) e da memória coletiva. Nele, Rossi afirma que a experiência e a cultura de um determinado povo influenciam os fatos urbanos, cujo resultado é a cidade. Defende a cidade como obra de arte em sua dimensão estética e como artefato, como obra de arquitetura e engenharia que cresce no tempo.
Neste livro, Rossi faz críticas ao excesso de funcionalismo e utilitarismo contidos na arquitetura do modernismo e propunha um retorno à razão, à lógica, à história e à cidade.
Em A Arquitetura da Cidade, Rossi trata sobre cidade, monumento, a forma da cidade e da arquitetura que a compõe. Uma das mais importantes noções que ele traz neste estudo é o conceito de locus:
“Já aludi várias vezes, no decorrer deste ensaio, ao valor do “locus”, entendendo com isso aquela relação singular mas universal que existe entre certa situação local e as construções que se encontram neste lugar. A escolha do lugar tanto para uma construção como para uma cidade tinha um valor preeminente no mundo clássico: a “situação”, o sitio, era governado pelo “genius loci”, pela divindade local, uma divindade de tipo intermediário que presidia tudo o que ocorria naquele lugar.” (A Arquitetura da Cidade, pg 147)
É essa ideia de locus como “a alma do lugar” que dá embasamento ao projeto que trataremos aqui: a sede da Prefeitura de Borgoricco.

Sede da Prefeitura de Borgoricco, província de Pádova, Itália. Foto da autora, 2019.
Borgorrico é uma comune (sedes das divisões municipais das regiões da Itália) da província de Pádova, na região do Vêneto, Itália que possui cerca de 8.765 habitantes (dados de 2017 ISTAT) e tem sua história profundamente ligada à centuriação romana.

Mapa de localização da cidade de Borgoricco. Fonte: viamichelin.pt
A centuriação romana (lat. centuriatio) era o sistema de marcação do território em que os antigos romanos organizavam o território agrícola e era caracterizado pela disposição regular através de uma reticulação ortogonal de estradas, canais e loteamentos agrícolas destinados aos colonos, que normalmente eram legionários aposentados.

Centuriação romana. Fonte: archeogat.it
A centúria, unidade de medida agrária dos romanos, era constituída de um módulo de superfície quadrada de 2400 pés de lado (1 pé romano era igual à 0,296 metros) que era igual a 20 actus que correspondiam a 710,4 metros (1 actus era igual à 35,52 metros).

Métrica da centuriação romana. Fonte: Museu da Centuriação romana de Borgoricco, 2019. Foto da autora.
A centuriação de Borgoricco é construída sobre um cardo que ligava Padova a Asolo e, segundo estudo recentes, remonta à um traçado primitivo à região do Vêneto de um decumano que ligava Vicenza ao mar: via Desman. (Fernando Dotti in: Aldo Rossi a Borgoricco, 2009 pg 15)

Mapa com modelo da centuriação romana de Borgoriccco mostrando os eixos da ocupação romana (cardos e decumanos) e a ligação com Padova (Patavium). Fonte: Museu da Centuriação romana de Borgoricco, 2019. Foto da autora.Museu da
Em 1984 foi aprovado o projeto preliminar do edifício, estruturado em um corpo central de dois pavimentos e duas alas laterais que resultam em um espaço aberto central destinado a abrigar as atividades e manifestações públicas do município. Muito se assemelha às villas vênetas e às referências palladianas (Fernando Dotti in: Aldo Rossi a Borgoricco, 2009 pg 17).

Fonte: Chiara Visentin: Aldo Rossi a Borgoricco 2009.
Segundo a descrição do próprio Rossi:
“A nova construção se coloca segundo os eixos da centuriação romana que constitui a característica principal do território. Ao mesmo tempo isso envolve, sobretudo do ponto de vista tipológico, a estrutura urbana da villa veneta, e com os dois corpos laterais conforma uma praça pública ou um “campo”.
Este campo é o local público por excelência, lugar de encontro ou de atividades para os mais jovens. Todo o “campo” é contornado por um pórtico.
O ingresso principal do Município é precedido de uma área coberta, marcada por duas colunas centrais, se encontra aqui uma parte do Museu e mais propriamente o Museu Lapidário.
A segunda parte do Museu se encontra na parte interna da biblioteca.
A biblioteca e o Museu constituem assim uma única unidade espacial e funcional e permitem que a vida comunal seja articulada entre a função cultural, administrativa, burocrática.
Os escritórios encontram-se ao longo das alas laterais.
A Sala do Conselho, no Plano Superior.
As diversas funções e a distribuição do edifício vêm minuciosamente descritas na prancha n. 2.
A cobertura do edifício é em cobre, eventualmente substituível por chapa metálica pintada.
A estrutura do edifício é em c.a. (concreto armado – interpretação livre) com paredes rebocadas ou paredes de alvenaria.[..]” (Aldo Rossi, apud Fernando Dotti, 2009 in Aldo Rossi a Borgoricco, pg.17)
O edifício possui em sua configuração projetual várias referências ao local e à centuriação. Essas referências se apresentam de diversas maneiras. A composição espacial do edifício remonta, como já mencionado anteriormente, às villas vênetas especialmente às villas palladianas, onde as alas laterais fazem as vezes das barchesas[1] destinadas às áreas de serviço e a parte central, com maior destaque, remonta às porções centrais e mais emblemáticas das villas palladianas.
[1]Barchesas, em italiano, são alas laterais aos corpos centrais das villas destinadas ao abrigo da produção rural, dos animais, equipamentos e ferramentas utilizadas nos trabalhos agrícolas.

Imagens de Vila Bararo e Vila Emo. Fonte: Chiara Visentin: Aldo Rossi a Borgoricco 2009.
Sobre a relação desta obra e Palladio, trataremos especificamente em outro artigo.
As fontes que se apresentam nas alas laterais fazem referência à relação do território com a cultura, representando os cursos d’água que há milênios marcavam o território e delimitavam a centúria[2].
[2] Oddone Longo in: Aldo Rossi a Borgoricco, 2009.


Fontes na entrada do complexo. Fotos da autora, 2019.
As proporções do edifício, desde as aberturas até o volume final, possuem referência à medida da centúria romana, que marca a arqueologia da cidade. Tudo foi cuidadosamente pensado para que a essência do local estivesse refletida no edifício, símbolo máximo da representação da comunidade.

Fachada onde se percebe as proporções da centuria em todos os elementos e espaçamentos. Foto da autora, 2019.

Abertura zenital do teatro ao interno do edifício. Foto da autora, 2019.
A cobertura da Sala Comunal se configura no modelo “casco de navio invertido” que faz uma referência à cobertura do Pallazzo dela Ragione de Pádova e à tradição e expertise veneziana do passado na construção naval.

Interior da Sala Comunal, com o detalhe do forro em casco de navio invertido. Foto da autoria, 2019.

Forro em casco invertido do Pallazzo Della Ragione, Pádova. Fonte: Chiara Visentin: Aldo Rossi a Borgoricco 2009.
Outra leitura é que essa cobertura representa a estrutura esquelética da caixa torácica de um cavalo, animal sagrado para os vênetos antigos[3]. Esta “caixa torácica” abriga justamente o “coração” do município, que é a sala onde a comunidade se reúne para acompanhar e debater os assuntos relativos à coletividade.
Aos fundos do edifício, no pátio que antecede a entrada do Museu da Centuriação, existe uma chaminé de tijolos que serve para a ventilação do sistema de aquecimento do complexo - que fica no subsolo. Este elemento, em sua forma e material de revestimento, representa o passado da cidade de Borgoricco onde a chaminé caracterizava as fabricas de tijolos e os fornos onde secavam os casulos do bicho da seda.[4] Este elemento marcou a transformação do território agrícola na era industrial, e assim mais uma vez Rossi absorve o locus no projeto arquitetônico.


Chaminés em tijolos no pátio posterior. Foto da autora, 2019.
A cada elemento, cada composição, ou mesmo pelo projeto, fica clara a influência do locus nesta obra. Qualquer outra edificação neste local não teria o mesmo significado.
Aldo Rossi com esse olhar intelectualizado e sensível soube traduzir a significação do local, sua história e o conjunto de seus fatos urbanos, a cultura e a identidade da população. Com essa carga simbólica, o produto é um edifício espetacular, belo em sua simplicidade, carregado de significado sem precisar de ornamento.
Como próprio Rossi afirmou: “[...] me parece esta obra a mais emblemática da minha arquitetura. Ou da arquitetura / ou tudo ao contrário. Quase uma construção arqueológica e um restauro.[...](Aldo Rossi, apud Chiara Visentin in “Aldo Rossi a Borgoricco. 2009 pg 66.)
Estudar e compreender uma obra assim carregada de significado é dever de todos os que fazem arquitetura. Neste mundo de desconexões, não é mais permitido que a arquitetura esteja desconectada do local onde ela se insere, negando-o e competindo com o mesmo.
Entender o locus é conectar-se com a história, o meio ambiente, as pessoas, a cultura. Isso gera uma arquitetura coesa que vai se harmonizar com o meio, estabelecer conexão com as pessoas daquele local, incitar a ideia de coletividade e pertencimento.
É a arquitetura atingindo seu propósito de existir.
Referências
ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. Martins Fontes. São Paulo, 2001.
VISENTIN, Chiara (org). Aldo Rossi a Borgoricco. Il Poligrafo casa editrice srl. Padova IT, 2009.
Fondazione Aldo Rossi : https://www.fondazionealdorossi.org/ - Acesso em 02/06/2020
Museo dela centuriazione: https://www.museodellacenturiazione.it/ - Acesso em 02/06/2020
Comune di Borgoricco: http://www.comune.borgoricco.pd.it/hh/index.php?jvs=0&acc=1 – acesso em 02/06/2020















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